quinta-feira, 4 de junho de 2009

Devotos - 20 anos (Entrevista)

Outra entrevista antiga com o pessoal da Devotos, falando do cd e dvd comemorativo dos 20 anos da banda.


- Alô, Cannibal?- Fala, Hugo! Já chegou em casa?- Na verdade liguei pra dizer que vou atrasar um pouco. O ônibus está demorando.- Tudo bem, eu estou na rua também. Se chegar em casa antes de mim, pode esperar numa boa. Minha esposa e minha filha estão lá.- Falou.
Chego alguns minutos depois no Alto José do Pinho, e começo a perceber alguns indícios de que estarei diante de uma banda com vinte anos de carreira. A filha pré-adolescente de Cannibal atende a porta e pede para eu esperar pelo pai. Sua esposa pede para eu ficar à vontade e diz que o marido volta logo. Pouco depois chega Neílton e seu amigo Gilson. O cara que ficou famoso por fabricar sua guitarra a partir de sucata e de pintar quadros agora investe na fabricação de Amps. Que de sucateados não têm nada. Orgulhoso do “filho”, me convida para ir ao estúdio de Cannibal para ver a sua cria: um bicho que “fala alto”, segundo ele. Bonito, bem feito, dá até vontade de comprar um. Enquanto engatamos uma conversa sobre os mais variados temas, Guilherme liga e pergunta se já rolou a entrevista. Respondo que Cannibal está atrasado e que se ele correr é capaz de pegar a entrevista ainda no início. Guilherme chega antes de Cannibal, que aparece duas horas depois da hora marcada, porque estava pegando as camisas comemorativas dos vinte anos de banda. Educado, parece suplicar:
- Meu irmão, me perdoe, por favor!- Tudo bem, contanto que dê a entrevista.- Então já estou perdoado.
E assim foi. O que era para ser uma entrevista séria, com guia estabelecido, acabou se convertendo num delicioso bate-papo entre cinco amigos espalhados no estúdio caseiro de Cannibal. E foram surgindo as histórias mais engraçadas e tristes sobre os vinte anos de carreira da banda, tudo sempre contado com inteligência e um senso de humor que beira às raízes do absurdo. Talvez perdemos um pouco do enfoque jornalístico, mas ganhamos muito em espontaneidade. E, por que não dizer, assim é mais punk. Punk-rock-hardcore como a história de uma das mais importantes bandas já surgidas em Pernambuco desde sempre. Confira abaixo a íntegra de um bate-papo de quase duas horas com três caras que têm histórias de sobra para contar.
Hugo – Vinte anos…Esperavam chegar até aqui? Passou Rápido?
Cello – (gargalhadas) – Demorou pra caralho!!!!
Hugo – Se a banda não tivesse dado certo, vocês estariam fazendo o quê hoje?
Neílton – Porra, Hugo! Ta pegando pesado…
Cannibal – É velho…Tem que botar a mão na cabeça e pensar…
Hugo – Vinte anos! É a hora de parar pra pensar mesmo…
Neílton – O problema é esse: parar pra pensar.
Cannibal – Aí acaba…Vou entrar naquela: “o que estou fazendo da minha vida?”
Neílton – Se for pensar nas broncas todinhas, Ordem dos Músicos, um monte de merda acontecendo…
Cannibal – É melhor nem pensar…
Hugo – Vocês vão lançar algum material relacionado aos vinte anos da banda?
Cannibal – Não agora no Rec-Beat, mas a gente tem um projeto de fazer um CD ao vivo patrocinado pela Petrobras. A idéia é fazer uma coletânea com músicas de todos os discos da gente e trazer alguns convidados. E gravar aqui mesmo no Alto José do Pinho.
Cello – CD ao vivo e DVD.
Guilherme – E a história de São Paulo, o DVD que seria gravado lá?
Cannibal – Aquela história de São Paulo já está virando lenda. Quando você faz um lance na brodagem você não tem condições de cobrar, de exigir. E a gente sabe que o trabalho com audiovisual é um trampo muito foda pra ser feito, pra ser finalizado. E a gente tinha dado mais de trinta fitas com material da gente de viagem e aquela coisa toda. E elas (a produtora) tinham toda a boa vontade de fazer. Mas a gente viu que não ia dar. Sem grana não tem condições. Hoje em dia, mesmo com toda a tecnologia na mão, o trabalho ficou maior para quem faz o trampo. Então sem dinheiro não dá pra fazer.
Neílton – Porque é um documentário, não é um show. Aquele show de São Paulo seria mais um material pro documentário.
Guilherme – Teve até a participação de Clemente, né? Como vai ser agora no Rec-Beat?
Cannibal – Tem umas pessoas que a gente já sabe que vai participar do DVD, daqui pra lá vai dar pra acertar com todo mundo: Clemente, Pitty, Lirinha, Zé Brown, Adilson Ronrona. Fora outros…Daqui pra lá vai rolar muita idéia ainda. Essa vai ser a comemoração mesmo, patrocinada pela Petrobras.
Guilherme – Rola esse ano ainda?
Cannibal – Tem que rolar esse ano porque o projeto é para os vinte anos do Devotos. O nome do projeto é “Devotos – 20 anos”.
Neílton – Na verdade o Rec-Beat é só o início das comemorações.
Cannibal – Na verdade vai ser igual ao fim de Sandy e Junior (risos)
Neílton – Vai ter um acústico pra fazer…
Hugo – Hoje, com vinte anos de carreira, dá pra perceber qual foi o pior e o melhor momento de vocês? Tem como avaliar isso ou não?
Cello – O pior eu apaguei (risos)
Cannibal – É muita tosqueira na vida, né, meu irmão?
Neílton – Teve fases de você botar a mão assim na cabeça e dizer: “pô, onde é que eu estou? O quê que a gente vai fazer?”
Cannibal – “Vou morrer agora…”
Neílton – Coisas assim que a gente nem imaginava como ia resolver. E o pior: a gente não estava nem aqui, estava longe, fora de casa, na maior roubada. Coisa muito pesada mesmo.
Hugo – Com vocês já estabelecidos no mercado?
Neílton – Não, na época que a gente estava começando.
Cannibal – Não tem um pior momento específico, mas teve coisas que a gente poderia ter aproveitado muito melhor. Como a gente não tinha maturidade pra isso, deixava nas mãos de terceiros. Tanto que a gente voltou a se produzir. Tanto que as pessoas cobram que a gente toca muito pouco no Recife. E aí tem gente que fica achando que a gente fica esperando os eventos da prefeitura pra tocar. Mas não é. Quando a gente vai fazer um orçamento pra fazer um show aqui, acaba constatando que não temos o suporte de grana pra bancar a coisa se ela der errado. A gente não quer ficar devendo a todo mundo, faz tudo com um pé no chão do caralho. Então se a gente fizer por conta própria e der errado a gente vai tomar no cu. Como é que a gente vai pagar a galera? E a gente sempre fica pensando: como é que a gente vai fazer um show só da Devotos?
Hugo – Ne verdade era uma pergunta que eu já tinha engatilhada aqui: por que vocês tocam tão pouco no Recife?
Cannibal – A história é justamente essa. Tem muito pouca gente que investe em banda., principalmente em banda do nosso estilo. Até mesmo eventos do governo e da prefeitura, tipo carnaval. A gente só vai fazer um show no carnaval pela prefeitura. A gente vai fazer o Rec-Beat, mas porque Gutie coloca quem ele quiser no festival dele. Mas sempre foi assim. Desde que começou esse carnaval multicultural que a gente só tem um show. Enquanto tem banda que vem de Brasília e que toca no carnaval todo. Ontem uma menina do JC perguntou como a gente conseguiu chegar até aqui (vinte anos), e eu expliquei pra ela que toda a grana que a gente pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque a gente sabia que um dia precisaria dessa grana extra para os instrumentos, pra gravar…É com essa grana que a gente guarda só pra banda que a gente consegue fazer as coisas. Mas ainda não é uma coisa que dá para apostar, para arriscar e fazer um show. Você pode apostar na feitura de um disco, mas em um show é muito arriscado. Tem que ter um suporte muito bom.
Cello – Até as viagens que nós fizemos foi com o dinheiro que a gente juntou.
Cannibal – Com o terceiro disco (A Hora da Batalha, 2003), depois que a gente rompeu com Dado (Dado Villa-Lobos, do selo Rock It!, que produziu o segundo disco do Devotos), ali rolou uma doideira…
Cello – Ali a gente percebeu que ou investiria na banda ou morria.
Cannibal – E a coisa boa é isso (pensativo). Não tem como negar, uma das melhores coisas que aconteceu com a Devotos foi o respeito não só do público que curte o som da banda, mas de pessoas que nem curtem o som mas respeitam a história da banda, dos componentes. Hoje em dia tem muita gente que vê a banda muito mais como uma realização social do que musical. É uma coisa positiva, legal. Mas não é tudo, porque não dá pra viver só de prestígio.
Hugo – E show? Tem algum especial que vocês lembram?
Cannibal – Pra mim foi aquele que aquela banda gringa não veio…
Hugo – Suicidal Tendencies, Abril pro Rock de 98.
Cannibal – Isso! Aquele ali foi foda, velho! Até porque liberaram o PA todinho pra gente (risos). Nunca tinham feito isso! Pra quem não sabe, a maioria das bandas que tocam antes das bandas headlinners nos festivais, o PA é sempre mais ou menos. Então fica sempre um som chochinho. Aí a galera da técnica libera o PA todo pra banda principal e fica todo mundo pensando: “porra, essa banda é foda mesmo!” (risos). Aí foi isso. O show da gente foi a mesma merda de sempre, mas liberaram o PA todo pra gente, ficou aquele sonzão (risos).
Neílton – O mais legal era a galera da produção. Chegaram pra gente e disseram: “ó, aconteceu isso, isso e isso”. Tava todo mundo num clima tenso do caralho. Saía um e chegava outro: “Vocês estão bem? Tá tudo certo?” (risos. Cello estoura numa gargalhada). Aí depois chegou todo mundo e disse: “Olha, vocês sabem da responsabilidade que têm.”
Cannibal – Quase que eu dizia: “eu pensei que a gente não ia tocar mais”.
Neílton – E a gente tranqüilo, dizendo: “tá beleza…”.
Cannibal – E o pior é que a gente não tinha noção do que estava acontecendo no show, porque a gente não escuta o PA. Quando terminou que a gente viu as críticas caiu a ficha: “caralho, foi tudo isso?” (risos). Essa valorização, Hugo, é que não tem jeito. Você pode ser a banda que for, você precisa morar fora para as pessoas valorizarem aqui. E a gente sempre fez o caminho contrário. A gente sempre achou que aqui mesmo poderia fazer a diferença. E até hoje a gente não faz (risos). Mas a gente continua.
Hugo – Como é a relação de vocês com os produtores daqui?
Cannibal – Profissional total, cara. Já fomos amigos, agora é profissional. É negócio: o show é tanto, se não puder pagar a gente toca em outra oportunidade.
Hugo – Demorou quanto tempo pra vocês perceberem que precisavam separar amizade de negócios?
Cannibal – Demorou demais, cara. A gente se fudeu. Tomou no cu. Se a gente tivesse percebido antes estaríamos bem melhor hoje. A gente demorou muito pra perceber isso. A gente levou nove anos pra gravar o primeiro disco. Depois disso demorou mais uns cinco ou seis anos até a ficha cair. Pra você ter idéia, a gente tocou em oito edições seguidas do Abril pro Rock, e a gente nunca ganhou grana com o festival. A turma fala (reclama) do cachê do Rec-Beat, do cachê disso e daquilo, mas a gente nunca ganhou grana com o Abril pro Rock. Era muito louca a relação. A gente já pagou pra tocar no Abril pro Rock. O último Abril pro Rock em São Paulo (2001) a gente fez de graça porque Paulo André falou que estávamos devendo uma grana a ele na prestação de contas (à época Paulo André era produtor do Devotos também). Essas coisas você só vem saber depois.
Neílton – Fomos uma das únicas bandas que não ficou devendo dinheiro a Paulo, porque a gente tomou essa atitude. A grana que a gente ganhava com o festival era pra cobrir os custos. Até o cachê da gente em relação as outras bandas era uma merreca. E ainda era passado da seguinte forma: “você vai ganhar um cachê taaaalllll”. E essa grana que a gente ganhou em Sampa a gente preferiu sentar com ele e dizer: “olha, Paulo, nós não queremos mais tocar no Abril”. E ele assim: “como assim vocês não querem?”, como se fosse a última mulher do mundo, a última coca-cola do deserto. “Se for pra tocar no de São Paulo ta beleza, mas no de Recife a gente não quer mais”. Aí quando estávamos prestes a romper com ele em termos de produção, de trabalho, aí a gente fez um orçamento das coisas que estávamos devendo, ele marcou um dia para pagar o cachê e nós recusamos. Dissemos para ele cobrir os custos que a gente devia a ele.
Guilherme – Paulo André era o produtor de vocês?
Neílton – Era. Duas coisas que Paulo talvez não entenda são: a gente não querer tocar no Abril pro Rock daquele ano; e a gente ter saído sem dever. Ele não pode falar nada da gente. Pode falar de qualquer um: Nação Zumbi, Cascabulho, todas as bandas que tocaram pra ele, ele “pode” dizer que devem a ele.
Cannibal – E a história de não tocar não era nada de menosprezar o evento. A gente tocou oito anos seguido e não tinha nada pra mostrar, nem tinha lançado disco ainda. A gente não tinha mais ânimo para tocar no Abril. A gente se perguntava: vamos mostrar de novo as mesmas coisas? (cantarola com ar de tédio) “Punk rock hardcore, sabe onde é que faz…”.
Neílton – E começamos a receber críticas justamente por isso. Eu nunca mais me esqueço de um fato. Eu não vou dizer o nome da pessoa. A gente estava no camarim e chegou uma menina e disse: “é muito bom ter o empresário como produtor do evento”. Como se isso fosse algum privilégio nosso. Aí eu expliquei que das bandas que tocam aqui, nós éramos a única que não tinha produtor, porque o produtor é produtor do evento. Quer dizer, a gente não é nada perto do evento. O resto dos produtores está com as suas bandas, e o produtor da gente está com o festival. A gente é só…Aí ela baixou a cabeça e saiu. Porque é fato mesmo. É como Cannibal falou: a amizade continua a mesma, mas pra trabalhar com a gente ficou bastante complicado.
Hugo – Vocês são praticamente os responsáveis pela nova reputação do Alto José do Pinho. Hoje o lugar é praticamente uma atração turística de Recife. Até que ponto isso causa orgulho e até que ponto gera desconforto?
Cannibal – Desconforto é só quando a gente está na rua e colocam um palco desses (estava sendo erguido o palco do pólo Alto José do Pinho perto da casa de Cannibal) aqui e a galera acha que a culpa é nossa (risos). Porque nem tudo que rola culturalmente aqui no Alto é a gente que faz. Mas ao mesmo tempo a gente tem consciência de que fomos nós que proporcionamos isso. Apesar de ser uma coisa independente. A viagem da gente era mostrar a cultura que tinha no Alto. A gente não sabia que as pessoas iam valorizar tanto, o que é uma coisa positiva. De tirar aquela imagem da mídia sensacionalista que o local era ponto de droga, de violência. Então esse foi o lance legal, das pessoas perderem o preconceito com a comunidade. E o lado ruim é justamente esse: a gente leva a culpa de muita coisa que a gente não tem nada a ver. E outra que as pessoas daqui começaram a desenvolver uma auto-estima tão forte que passaram a fazer as coisas aqui de forma independente, sem consultar a gente, que já tem uma certa experiência com esse tipo de coisa. Já falando da Ong Alto-Falante: se nem a gente mais pede consultoria às pessoas mais experientes nas coisas que resolvemos fazer, acontece a mesma coisa com as bandas novas. Elas vêm conversar já para querer tocar no evento que vamos produzir. E a idéia da gente não é essa. É ter um diálogo, um papo do porquê o cara estar querendo fazer aquilo, se tem uma irmandade, uma amizade…Porque a gente vê que se um cara for montar uma banda pra ganhar grana não vai dar em lugar nenhum. Mas se ele tiver pensando no coletivo, aí sim a gente consegue colocar todo mundo junto. Hoje tá foda, porque isso é resultado da mídia tecnológica na mão de todo mundo. As divulgações estão muito rápidas. Orkut, MSN, as pessoas se comunicam muito rápido e se divulgam muito rápido. Mas o que colocam na cabeça deles não são referências que passam alguma coisa positiva. Podia até citar nome de banda que passa algo positivo. Você vê uma banda tocando em algum site ou numa TV qualquer e você vê que são bandas que seguem a cartilha da mesmice. E são bandas que você nunca ouviu falar, e que de uma hora pra outra estão no “Faustão” recebendo prêmio. E aí o cara acha que se o cara chegou ali fazendo mais do mesmo o negócio então é fazer mais do mesmo. Na época da gente a gente escutava o cara no rádio, aí ia no show do cara, porque pra ver o cara em algum programa de TV era quase impossível. Pra comprar um disco tinha que ser no sebo. Então era muito diferente a história comparada com o que é hoje em dia. As pessoas não se preocupam em pesquisar já que tem toda a tecnologia na sua casa. E isso é um lado negativo pra caramba aqui em cima. Porque a galera aqui também está correndo atrás de mais do mesmo. Todo mundo quer fazer igual, corre atrás de Rec-Beat, de Pré-Amp, e não se preocupa em fazer o próprio show como a gente fazia antigamente.
Hugo – Você sempre fala que tem muita gente que divulga show do Devotos sem fechar com vocês, usando o nome de vocês. Acontece o mesmo com o Alto José do Pinho? Tem gente que se beneficia da marca Alto José do Pinho sem ter nada a ver com ela?
Cannibal – Politicamente, com certeza. Culturalmente até que não. No início dos anos 90, no começo do movimento mangue, com certeza aconteceu muito. Tinha gente que vinha fazer matéria aqui e vinha gente que nunca tinha aparecido aqui, que era de Boa Viagem e dizia que era daqui. Mas hoje acabou. Hoje em dia o nome só é usado politicamente mesmo. Tem muita gente usando o Alto José do Pinho pra isso. Muita gente colocando rádio, até neguinho querendo dar uma força ao maracatu e ao afoxé e ao caboclinho e em boa parte das vezes é algo apenas de política partidária. A gente muitas vezes paga por isso. A gente não se apresenta nos eventos da prefeitura e as pessoas sabem muito bem porquê. Basta pensar. A gente não consegue ficar calado. Quando a gente percebe alguma coisa errada a gente vai e fala mesmo. E às vezes é uma faca de dois gumes, porque eu me lembro que em dezembro a gente foi no Sopa Diário e aí eu falei que eu achava um absurdo a prefeitura pagar três milhões pra Mangueira fazer uma homenagem ao frevo de Pernambuco tendo tanta escola de samba daqui que não consegue nem sair no carnaval, tanta agremiação que não consegue desfilar. É uma coisa inaceitável na cabeça de todo mundo. A prefeitura pode dar três milhões para quem ela quiser, mas tem que dar também pras pessoas que estão precisando aqui. É a mesma coisa que você cuidar do filho dos outros e não cuidar do seu. E eu sempre falei isso e sempre que vejo alguma coisa que acho errado eu ligo pra falar também. Esse show agora que a gente fez no Burburinho eu liguei pra Beto Rezende (jornalista) pra dizer que foi uma merda, que a prefeitura faz show e não divulga, principalmente aquele. Porque eu não consigo ficar calado. E a gente paga por isso. Fica muito claro depois porque fazem um evento e não colocam a gente. A gente tira leite de pedra o ano todo. As pessoas perguntam por que a gente continua…Deve ser a adrenalina.
Hugo – Vocês já pensaram alguma vez em parar?
Cannibal – Parar a Devotos? Nunca. De jeito nenhum. Ao contrário. Muito antes de a gente gravar a gente sentou pra saber se era isso realmente que queríamos fazer. Traçamos uma meta e fomos tocando, tocando, tocando, exatamente como o Matalanamão faz. E aí a gente parou uma vez e perguntou: o que estamos querendo com a banda? Queremos levar isso em frente? Porque se não for a gente vai estudar, arrumar uma profissão e pronto. E decidimos levar em frente. E tudo que a gente faz é pensando na banda. Pro show agora do Rec-Beat a gente já fez a camisa em comemoração aos vinte anos. Sempre pensamos em colocar a banda em evidência. Tem que ter alguma coisa pra mostrar que a banda está viva, que a banda está acontecendo. Eu sempre digo isso pra quem está começando. Senta e pensa se é realmente o que você quer fazer, porque ganhar dinheiro com banda não rola.
Guilherme – A gente estava conversando sobre essa história da dependência do governo. Vocês não acham que existe uma dependência muito grande das bandas com o governo, que ninguém faz nada, essa coisa das bandas não correrem atrás.
Neílton – Acho que existe dependência de tudo.
Guilherme – Fica essa história de existir banda que só toca no carnaval, Fig, ao invés de se produzir e correr atrás. Eu vejo o pessoal de Natal, da Paraiba…lá não tem mamatinha do governo.
Neílton – É um mau costume. Todo mundo queria aparecer na televisão, todo mundo queria aparecer na MTV e o caminho mais fácil pra isso era tocar no Abril pro Rock ou em algum evento que fosse transmitido pra fora. As bandas que estão começando se prenderam a esse costume de tocar em festival. Ninguém toca mais em buraco como a gente tocava, né, Cello?
Cello – E a questão do investimento mesmo que a gente sempre fez. Nós viajamos muito pelo Nordeste e bancamos tudo do nosso bolso. Andado de ônibus, de caminhão, de jegue, da porra toda. A gente sempre se arriscou e sempre foi buscar. As bandas daqui costumam achar que aqui é o começo de tudo. Que aqui é a base para a carreira.
Neílton – E o lance é botar a cara, é fazer show. Mas principalmente cair na estrada. E juntar grana pra fazer isso, porque ninguém faz.
Cannibal – O governo criou uma história em cima da cultura de Pernambuco que a turma não entendeu. Acho que aquela coisa de fazer os eventos patrocinados pelo governo e pela prefeitura a rapaziada entendeu que aquilo ali seria o trampolim. E na verdade não é assim. Se você for ver, quando você pega esses produtores que vinham ver os eventos, o cara terminava no Galettu’s (antigo nome do bar Garagem). Terminava indo a lugares em que não tinha banda nenhuma que tocava no Abril pro rock. E o cara queria pesquisar aquilo, porque ele via que ali tinha coisa melhor do que o que estava tocando naquele evento. Na cabeça deles, lógico. Aconteceu isso com a gente aqui no alto José do Pinho. Quando o Fábio Massari foi fazer o Abril pro Rock, ele quis vir no Alto. Ele queria saber como era possível que num morro tivesse tanta banda de rock. Porque na cabeça dele no morro deveria ter banda de samba, de pagode, de qualquer coisa. Mas de rock! E aí veio aqui e viu um monte de banda de rock tocando junto. E a rapaziada que está começando se esquece disso. Se você não está tocando no Abril pro Rock, você pode estar lá dentro com o seu CD, com o seu release. E dar na mão do cara. Aquela coisa do “nem toquei mas consegui alguma coisa”. E a rapaziada esquece disso, dessas coisas bem simples porque fica bitolado em tocar e tocar no evento.
Hugo – Vocês chegaram num formato agora que só são vocês três. Acabaram com todos os atravessadores: não têm produtor, assessoria de imprensa, o Neílton está fazendo os Amps agora. A idéia é vocês mesmo fazerem tudo…
Neílton – é dominar o mundo (risos).
Cannibal – É dominar o Alto…
Cello – O Alto a gente já dominou (risos)
Cannibal – Aconteceu isso no Showlivre, não sei se vocês viram. O Clemente (Inocentes) perguntou pra gente o que Neílton tava fazendo. A gente respondeu: “Neílton está fazendo tudo. Neílton fez a Terra, as árvores, as pessoas” (risos).
Hugo – Mas a gente que acompanha as bandas novas vê muito essa acomodação, da galera não fazer nada. Banda que não tem nem um ano e já precisa de um produtor…
Cannibal – O foda é que isso aqui, Gutie…OPS, foi mal, Hugo. (gargalhadas gerais).Você quer que peça desculpas, Hugo?
Hugo – Não precisa…
Cannibal – Pra vocês verem que Gutie mora no meu coração (gargalhadas).
Hugo – Mudando de assunto: qual foi o primeiro cachê que vocês ganharam?
Cannibal – Foi num show que a gente fez com Stella Campos de versões punks para as músicas do The Doors. Foi uma merda do caralho (risos)
Hugo – Falar em punk, vocês ainda levam muito dedo na cara e acusações de “traidores do movimento” porque tiraram o Do Ódio do nome da banda?
Neílton – Esse lance de traidor do movimento nunca pegou com a gente.
Cannibal – A gente teve um problema desses quando a gente gravou. Quando a gente fez clipe pra MTV. Parecia que a gente tinha feito a pior coisa do mundo. Depois que a gente gravou o primeiro disco (Agora tá Valendo, 1997), andava na rua e punkzinho ficava enchendo o saco, dizendo: “traidor do movimento”. Faziam panfletos escritos “Devotos traíra” e distribuíam. Mas nunca chegou a incomodar fisicamente. (risos).
Neíton – Teve um lance muito doido. Lembro de uma crítica que eu li sobre o primeiro disco da gente dizendo que a banda perdeu a vontade de ir pra eventos como o Abril pro Rock. Era aquele discurso: “aquela banda sofrida do Alto José do Pinho, mostrando o valor que tinha o subúrbio”. E aí concluía: “agora acabou, eles gravaram” (risos). É sério. Aquela coisa “eles não vão passar mais fome, começaram a ganhar dinheiro”.
Cannibal – A miséria é linda (risos)
Neílton – Engraçado que a maior luta da gente é justamente pra acabar com isso, com a miséria. E o que a galera mais quer é isso. Na verdade é um lance que está na cabeça da galera que você tem que ser fudido e ruim pra ter valor. E ao mesmo tempo você é tratado como gueto, por mais valor que você consiga passar pra alguém, você é tratado como gueto por não fazer uma música que venda. Porém, você tem que ser pobre, fudido, magro.
Hugo – O Lobão tava falando outro dia na TV que achava os arranjos do Chico Buarque lindo, mas que achava a abordagem dele muito burra, porque era a de um cara de classe média-alta que cultuava a pobreza, que achava que o bonito era ser pobre, que toda a poesia e singeleza da vida eram encontradas na pobreza. Vocês concordam com isso? Existe algo de poético na pobreza, na miséria? Ela é bonita? Vocês sentem saudades da época fudida de vocês?
Cannibal – A gente sempre procurou fugir disso. A gente sempre tocou para ter um sustento, uma dignidade. Por isso que eu volto para aquela história de darem três milhões para a Mangueira sabendo como é a situação do samba aqui em Pernambuco. Como ele é maltratado, não é tocado nas rádios. Cello tava me contando que viu na TV Lia de Itamaracá pedindo para a Celpe ligar a luz dela, porque eles tinham cortado. E a mulher vai desfilar na Mangueira!Que porra é isso? Onde é que a gente está? Não tem como a gente ficar calado com isso. E a turma paga a luz dela colocando um showzinho dela aqui e ali. Aí ela vai e agradece ao prefeito João Paulo. Essas coisas revoltam. E eles (prefeitura e governo) sabem que se der chance pra neguinho do morro o neguinho vai falar, velho! E é por isso que Devotos não toca nesses eventos. Devotos nunca tocou no Marco Zero. Uma menina da Bahia me perguntou porque a gente nunca tocou no Marco Zero. Ninguém quer colocar uma banda que quer falar dos seus deveres e direitos em evidência. Porque se der moral pra galera saber o que de fato acontece vai fuder tudo. E a gente não se cala. Não é porque a prefeitura colocou a gente pra tocar num palco que eu vou me calar.
Hugo – Vocês acham que são discriminados aqui em Pernambuco também por fazer hardcore?
Cannibal – Total, cara! Não só por causa do hardcore, mas principalmente pelos temas. Por ser do subúrbio.
Neílton – Porque a gente tem ciência das coisas que se passam ao nosso redor. E a gente tenta passar isso pra galera nas músicas. E no nosso caso fica ainda mais difícil porque é muito mais fácil exportar o exótico, o modelo pré-estabelecido. E não estou falando só da gente. Tem trocentas bandas aqui em Pernambuco que faz um tipo de música totalmente diferente. Na verdade não tem espaço, a não ser que você adote o modelo exótico.
Hugo – É por isso que vocês acham que não saíram do país ainda?
Neílton – A gente já saiu. Só que faltou alguém que fizesse o resto do caminho.
Hugo – Vocês saíram e não tocaram?
Neílton – A gente tocou. Fomo até a “atração internacional”. Foi um festival de inverno.
Hugo – Eu não sabia disso. Foi aonde?
Neílton – Em Lisboa. Em 2000.
Cannibal – E ficamos uma semana lá sem fazer mais nada.
Cello – Comendo bacalhau pra caralho! (risos)
Neílton – É muito fácil pegar um produto já pronto. Um produto que o cara sabe que vai vender. É muito difícil hoje os produtores locais encararem uma temporada de estrada num circuito mais alternativo. Eu nem digo circuito muito underground. A gente recebeu proposta de fazer uns shows com uma banda que tinha um público do caramba em Portugal. E tudo que fizeram foi dizer que a passagem estava comprada para o dia tal. Porra, na Europa, cara! Com um monte de coisa pra fazer, um monte de lugar para tocar e explorar. E você voltar pra casa sem ter feito nada. Você lembra, Cello, desse estresse?
Cello – Eu não lembro dessas partes ruins porque eu vou deletando.
Neílton – Eu guardo algumas coisas para relembrar. Pra não cair no mesmo erro.
Hugo – Vocês têm idéia de quanto tempo por ano passam fora de Recife?
Cannibal – A gente desce pelo menos umas três, quatro vezes. A base é São Paulo. Ano passado a gente conseguiu fazer Goiânia e alguns shows no Rio. A gente recebe muita proposta para tocar em Minas Gerais, mas é aquela coisa amadora. E a gente não está mais naquele lance de pagar pra tocar.
Hugo – Já estão com material novo?
Neílton – Não.
Cannibal – A gente vai fazer agora igual a Sandy e Junior (risos)
Guilherme – Mas vocês pensam em fazer outro CD de nove, dez faixas?
Cannibal – Vai ter a coletânea ao vivo.
Neílton – A gente vai fazer o ao vivo e depois vai pensar. A gente nunca coloca o carro na frente dos bois. Porque a gente está produzindo muita coisa.
Cannibal – E fazer por etapas também.
Guilherme – E esse formato de CD? Vale a pena ainda lançar CD?
Cannibal – Isso vai, com certeza.
Neílton – É o seguinte: eu estava discutindo dia desses sobre o possível fim do CD. Como se pensava que teria o final do vinil Na Europa ainda se vende muito vinil. Nós ainda somos bem atrasados em termos de mentalidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as novas tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de uma nova tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela tecnologia que está em desenvolvimento pra partir pra ser ainda mais moderno. Tudo tem que ser feito com equipamento de ponta. A gente na verdade precisa reaprender a reutilizar as coisas. Que ainda têm uma vida útil muito grande. Mesmo que a gente não enxergue. O CD como um souvenir não vai acabar. Não vai ser tão fácil trocar uma mídia. Já se tinha o saco de você perder um álbum bonito como era o vinil pra pegar uma caixinha desse tamanho que é o CD. Eu sou muito frustrado porque não consegui fazer uma capa de vinil. Quando a gente começou a gravar já era CD. Eu lembro que eu fiz uma capa gigante para colocar uma fitinha demo. Só pra ter uma capa grande. E o lance todo é esse. Eu sou fã da tecnologia, mas eu sou fã da gente explorar a tecnologia até o seu limite. Não da gente pagar sempre pra alguém ficar produzindo e inventado novas tecnologias enquanto ainda não usufruímos o bastante do que temos à nossa disposição. A sonoridade do vinil era melhor. O CD fudeu tudo. O mp3 está fudendo mais ainda.
Guilherme – A história toda é o formato. Ainda existe aquela coisa de ter que fechar um CD com doze músicas? Na Internet, raramente você escuta dez músicas de uma banda. E a gurizada vai baixando a esmo. Hoje em dia é muito melhor você ter três, quatro músicas boas, do que ter doze meia-boca, precisar fazer “coxinha” pra preencher um CD, de ter que colocar remix. E a Fresno, por exemplo, lança uma música por mês na Internet. E você vai nos shows e vê a gurizada cantando tudo. De repente eles encontraram o formato deles.
Neílton – O mais doido dessa história é que a gente está indo para o lado de deteriorar as coisas. Esse lance do Fresno realmente funciona pra eles porque a gurizada tá a fim de consumir rápido. Mas também é uma coisa descartável. E a gente pensa numa coisa mais duradoura. Quem me dera se a gente tivesse a possibilidade de voltar a usar vinil single. A qualidade de áudio seria outra. É isso que se perdeu. A galera está mais interessada em consumir do que propriamente em curtir. A curtição virou outra situação. É um chiclete. Você mastiga e joga fora. Tanto que a gente fica pensando nas possibilidades de não desvincular o CD do encarte. Como a gente estava falando antes. Fizemos questão que o nosso último trabalho (Flores Com Espinhos para o Rei, 2006) respirasse. Não é só uma discussão nossa, é uma discussão mundial de quem trabalha com áudio. Da música ser valorizada pela gravação, e não pelo mercado.
Hugo – Qual o disco da Devotos que vocês ficaram mais satisfeitos com o resultado final?
Todos – Flores com Espinhos Para o Rei.
Cannibal – O pior é o primeiro.
Hugo – Eu costumo dizer que o primeiro tem o melhor repertório com a pior produção.
Cannibal – Justamente.
Guilherme – Quem foi que produziu o primeiro?
Cannibal – Lúcio Maia.
Guilherme – Pô, Hugo. Você tá pulando pra caramba. Tem que conversar com essa gurizada que acessa o site.
Hugo – A gurizada que se vire e pesquise (risos)
Cannibal – Esse negócio que Neílton falou. Teve uma menina que entrou hoje no orkut e me perguntou onde achava o primeiro disco da Devotos. E dizendo que queria muito o disco, embora tivesse as músicas já. Ela queria o encarte e tal. E era uma menina que devia ter uns 15 ou 18 anos. Eu disse pra ela ir até a Galeria (complexo de lojas de discos em São Paulo) que ela acharia entre os usados, embora devesse ser caro. Tem gente que ainda quer o disco.
Neílton – Isso é muito doido. O gringo quando é fã é fã mesmo. Aquela galera que curte Jornada nas Estrelas (a série de filmes) faz questão de ter tudo sobre o filme, de se vestir igual. Aqui quase ninguém faz isso. E quem faz é chamado de doido. Porque essa questão de você pegar o CD e querer o encarte é um negócio que está morrendo. Essa gurizada nova não quer. Ela tá sendo mal ensinada. Menosprezando o papel, o toque, o tato.
Hugo – Vocês conseguiram renovar o público da Devotos ou é só velho que continua curtindo?
Neílton – Não, tem muita gurizada. Tem o vovô, o pai e o neto.
Cello – Impressionante, cara.
Neílton – É massa, cara. Ficam os pirralhas na frente fazendo a roda, os pais tentando proteger e os avós lá atrás só olhando (risos).
Cello – Aí é que eu fico pensando: tem muito tempo mesmo que a gente tem a porra dessa banda (risos)
Guilherme – Das bandas que vocês viram nos anos 90, o que vocês acham que poderia ter vingado e ficou no meio do caminho?
Cannibal – Moral Violenta era uma banda que…ixe! Era uma banda que tinha aqui, e ensaiávamos juntos: Moral Violenta e SS-20. Só que SS-20 era tipo Exploited. Era a coisa mais radical que tinha no punk daqui. E o Moral Violenta fazia um estilo meio Cólera. As músicas eram bem pegajosas. Os caras eram do IPSEP. E tudo de temática social. Cada letra do caralho. É uma banda que se ainda tivesse trampando ia dar muito o que falar. Mas é porque naquela época, nos anos 80, só quem tinha grana era que conseguia gravar. Tanto que a única banda que gravou na época foi o Câmbio Negro. Foi pra São Paulo, voltou pra Pernambuco e acabou a banda. Mas era a única banda que conseguia gravar disco.
Neílton – E a gente escutava pra caralho.
Cannibal – Eu ia muito pros shows deles. Ia pros ensaios, ficava vendo os caras tocar.
Neílton – Teve uma época que a gente não tinha grana pra ensaiar, e eles liberavam o estúdio pra gente. Nós éramos bem amigos deles.
Cannibal – O legal daquela época era a irmandade que rolava entre as bandas. O Alto seguia a cartilha do movimento punk, as bandas eram muito unidas. Todo mundo ensaiava com o mesmo instrumento.
Guilherme – O metal era muito maior nessa época, né?
Cannibal – Sempre foi e ainda é. O metal ainda é muito grande. E a gente estava no esquema deles. A gente era fudido demais, muito tosco. Tocávamos sem equipamento. Tem uma foto de uns shows antigos em que não tinha nem pedestal pro microfone. Ficava um cara segurando o microfone pra eu poder cantar. E gente pra caralho. E o som tosco. Só escutava o pém, pém , pém…E a gente ia na traseira dos ônibus. Os shows eram no Curado e a gente ia daqui pra lá na traseira do ônibus. Quem tinha grana passava com os instrumentos e o resto pulava aquela gaiola que existia nos ônibus. E voltava do mesmo jeito. Aí quando chegava no Alto levava um baculejo da polícia. Toda vez era isso, não tinha jeito. Deitava no chão, abria as pernas, aquela palhaçada toda. E era sempre o mesmo policial que fazia a mesma coisa com a gente.
Hugo – Teve um show dos Raimundos em 94, no Circo Maluco Beleza, que vocês fizeram a abertura e estavam tocando em outro lugar e foram até o Circo a pé.
Cannibal – A gente tava tocando no Forró Chique. E fomos a pé até o Circo. Naquele tempo a gente bebia pra caralho.
Neílton – Ali no Maluco Beleza, todos os shows, todas as cinco edições do Abril pro Rock a gente foi andando.
Cannibal – A gente passava no meio da galera carregando os instrumentos.
Hugo – Do Alto até lá?
Neílton – Daqui pra lá, cara! Não tinha ônibus e não tinha van. A gente saia a pé e colocava os instrumentos nas costas. Era do caralho porque tinha uma galera bombadinha que ia de carro. Cada carrão do caralho e a galera passava gritando pra gente: “porra, Devotos é do caralho! E vruuuuuuuuummmmmmm” (risos). Teve uma que eu nunca vou esquecer. A gente foi participar daquela premiação da MTV em 95 ou 96. Aí Cannibal caprichou, pegou um casaco de general, a gente foi de ônibus e chegou no aeroporto, foi a primeira vez que a gente viajou de avião. Aí chegamos na MTV, Cannibal vestiu a roupa e a gente animado pra caralho. Entramos na fila pra entrar no local e vimos Frejat no início dela, lá na casa de caralho, e a gente todo feliz porque estava na mesma fila do Frejat, Paula Toller (risos). Aí depois da festa teve uns comes e bebes. E na festa colocaram a gente na primeira fila, e a gente achando lindo tudo aquilo. Os caras do Pato Fu sentados e a gente acenando pra eles (risos). Maior goga a gente (risos). Aí quando a gente percebeu começou a encher de gente, que é onde a galera coloca gente pra dançar (risos). Cada um de nós foi pra um lado e eu fiquei sentado na escada, todo triste. No vídeo em que Marcelo D2 está cantando com Falcão, do Rappa, dá pra me ver sentado na escada. Aí no final nós fomos pra um comes e bebes. Bebida de graça, cigarro, tudo que era droga, babilônia total! Arnaldo Antunes gravando clipe, casa cheia de artista. E uma mesa gigante com comida. Ficou eu e Siba roubando comida porque a gente não sabia se ia ter o que comer no hotel. Aí voltamos, dorimos no hotel, pegamos o vôo de volta e chegamos no aeroporto do Recife sem um puto no bolso e perguntado: “meu irmão, como é que a gente vai voltar pra casa?” (risos). Foi todo mundo na traseira do ônibus.
Cello – Esse foi um dos bons momentos (gargalhadas).
Cannibal – E foi bom também porque eu lembro que Cello era vegetariano. Quase que virava emo (risos). Aí ia ter que tirar ele da banda, não ia ter jeito (risos). E ele não comia carne. E a gente foi pra um lugar pra gravar o primeiro disco e não deu certo. A gente ficou numa casa em que tomava o café-da-manhã e guardava o resto pra comer de noite. Uma miséria do caralho. Aí teve um dia que colocaram uma carne lá. Eu e Neílton começamos a nos servir de carne. Aí perguntamos: “Cello não vai querer, né?”. E ele: “Não vou querer uma porra!”. (risos). Uma fome do caralho, ele acabou com a carne toda (risos).
Neílton – Eu tava falando pra Hugo daquela nossa passagem pelo Rio, lembram?
Cannibal – Puta que pariu, só bons momentos (risos)
Neílton – A gente ficou num hotel perto da gravadora (BMG). Hotel três estrelas, com um delas já apagando e caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra tocar e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era pão com queijo, uma banana e café-com-leite. Aí ficava assim até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia da tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga roncando.
Hugo – E vocês passavam por tudo isso sendo contratados da BMG?
Cannibal – Contratados! E com produção de Paulo André.
Neílton – Bicho, era foda. A gente entrava naquele puta prédio da gravadora, cheio de seguranças, de bermuda e chinelo para encher nossas garrafas de água. O passatempo da gente era ficar olhando as meninas na praia.
Hugo – Da nova geração de bandas do Recife, o que tem chamado a atenção de vocês?
Cannibal – Rapaz, é difícil. Eu tenho escutado muita velharia, muito dub e outras vertentes do Reggae. Mas aqui de Recife (pausa). Eu tenho visto os shows da Plugins, do D Miopis, duas bandas promissoras.
Neílton – Eu só escuto coisa antiga.
Cannibal – Eu apresentei a última edição do Pátio do Rock. Essa Júlia Says, que vai tocar no Rec-Beat, pra mim vai ser a banda! Assim que essa galera conseguir gravar e alguém que produza os caras eu acho que vai ser A banda. Eu vejo uma vida ali. Mas estamos em épocas diferentes. É tudo muito diferente do que era nos anos 90. Naquele tempo existia um corpo-a-corpo maior. Você sentia originalidade entre as bandas. A galera hoje não pesquisa muito, e acaba fazendo uma banda só por fazer mesmo. E acaba ficando tudo muito igual. Tem que achar uma identidade, senão você fica igual a todo mundo. A gente toca muito em São Paulo por causa disso. Porque o hardcore da gente é diferente, muito neguinho já disse isso. E se fosse igual às outras bandas não rolava da gente ir sempre pra lá. Hoje eu vejo, criativamente falando, a coisa muito menor do que era nos anos 80 e 90. Criou-se uma peneira de lá pra cá e só ficou quem era original. Teve até gente que saiu, mas por outros motivos, porque arrumou família e precisou arrumar um meio de sustento fora da música.
Guilherme – Como é que está o CD de Dub que você está produzindo?
Cannibal – Eu pedi pra fazerem umas oito bases de músicas porque eu tinha umas letras sobrando. Aí quando ficou pronto fiquei com vontade de reescrever as letras. Aí escrevi tudo e entramos em estúdio e gravamos. Mas aí tem umas coisas que ainda não estão legais. Principalmente de voz, coisa que ainda não está muito segura. Tem muito buraco, muita coisa espaçada. Mas basicamente é um CD de dub com participação de Zé Brown, de um poeta de Peixinhos, Fred 04 faz os cavaquinhos.
Guilherme – Tem previsão de lançamento? Nome?
Cannibal – Não sei. A idéia era só gravar as músicas e colocar na Internet pra galera baixar. Mas não sei se vai ter nome. Eu só sei que não quero fazer show. Vai ser a Enya da Jamaica (risos). É só uma coisa que eu gosto de fazer e que a galera não vai ouvir muito na Devotos.
Guilherme – E o Estereoclipe?
Cannibal – Me chamaram pra apresentar o programa. Já tinham me chamado antes, quando China ainda participava. Mas eu disse que não era a minha praia. E disse que não ia fazer o negócio porque eu não sei nem ler! Aí combinaram da gente fazer um piloto. Só que o piloto foi uma armadilha, porque já estava rolando. Depois disseram que ia rolar uma graninha e eu topei fazer. E a história é desconstruir a imagem do apresentador. Na verdade eu dou um tema e deixo a galera falar. Se você for ver o programa eu falo muito pouco. E está sendo legal porque o programa está indo muito pra área social, que é um lance que a gente trampa já há algum tempo. Mas eu nem vejo o programa. Eu vi uma vez e achei uma merda. Não o programa, mas o meu desempenho. Aí resolvi não ver mais. E acho que deveria sair daquela emissora, que é religiosa e tal. O programa é gravado nas quartas e vai ao ar aos domingos. A emissora não tem nenhum compromisso social. Seria melhor se fosse veiculado na TV Universitária.
Guilherme – E como vai ser o show do Rec-Beat?
Cannibal – A gente está ensaiando umas músicas antigas do Inocentes. A gente não sabe ainda como vai ser a participação dele no show, se ele vai entrar no meio e ficar até o final. E a idéia é ele fazer umas da gente também. E ele foi a principal influência do estilo da banda. Eu particularmente quando pensei em fazer uma banda foi quando escutei Inocentes, o “Pânico SP”, que era um single com quatro músicas. Parecia que ele estava falando do Alto José do Pinho. E na época eu andava com a rapaziada do punk mas eu curtia muito metal: Iron Maiden, AC/DC. Mas só fui me identificar com algo mesmo quando ouvi Inocentes. Vi uma matéria sobre eles na Bizz e comprei o disco deles num sebo. Me identifiquei muito com as letras. Daí resolvi fazer a banda. Eu não saco nada de inglês, tudo que escuto é nacional. E a gente é filho do rádio. Não tínhamos dinheiro para comprar discos, então o jeito era ouvir rádio, que naquela época, nos anos 80, ainda tocava rock. Tá certo que era um rock babaca do caralho, mas era rock.
Entrevista retirada do site:

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